‘Vou aproveitar que sou negro para entrar em uma boa universidade’

Sabine Righetti

Vou chamá-lo de João. Com exceção do seu nome, que é fictício, todo o restante da história é verdadeira.

Conheci João, 15, na festa de Natal de uma ONG de São Paulo que cuida de crianças e de adolescentes retirados da guarda dos pais. Assim como os demais “irmãos” postiços, João chegou a um dos abrigos da ONG –chamados de “lar social”– porque sofreu maus tratos da família.

Como é negro e garoto, as chances de sair do espaço com uma família adotiva diminuem conforme a sua idade aumenta. No Brasil, a preferência das famílias na hora de “escolher” uma criança para adotar ainda é por crianças pequenas e brancas, de preferência meninas. Se não for adotado nos próximos três anos, João sairá do abrigo quando completar 18. Então, terá de seguir sua vida e se sustentar.

O garoto não me contou como chegou ao abrigo: se sofreu violência, abuso ou se foi vítima de negligência familiar. Esses são alguns dos motivos pelos quais muita criança vai parar em abrigos temporários no Brasil, como o que visitei. Muitas são retiradas das ruas; a maioria é filha de usuários de drogas pesadas.

ÓCULOS RETRÔ

O que sei é que João chegou ao abrigo há alguns anos. E que, além de chamar atenção pelo estilo descolado, com penteado black power e óculos retrô, ele também se destaca pelas boas notas. Acabou de ser aprovado no ‘vestibulinho’ de uma escola pública onde fará ensino médio técnico. Quer ser jornalista.

Claro, quis saber tudo sobre mim: onde me formei, onde comecei a trabalhar, como é a minha rotina. A cada palavra, tentei incentivá-lo. Dizia que ele tinha de estudar bastante, essas coisas.

“Vou aproveitar que sou negro para entrar em uma boa universidade”, disse.

Como assim, João?

Ele explicou: “Ser negro agora é vantagem para quem quer estudar porque dá pontos no vestibular em boas universidades públicas. Se não fosse por isso, eu nem pensaria em fazer faculdade.”

Sim, há dez anos, candidatos auto-declarados pretos, pardos e indígenas (classificação do IBGE) passaram a ter vagas reservadas no exame de ingresso da UnB, 5a melhor universidade federal do país, de acordo com o RUF. A reserva de vagas acabou alcançando todas as escolas federais do país e, espera-se, deve chegar às três universidades estaduais paulistas –USP, Unicamp e Unesp– até 2018 (hoje, USP e Unicamp dão pontos extras no vestibular para pretos, pardos e indígenas e para egressos de escolas públicas).

‘SE NÃO FOSSE ISSO’

Pois bem. Já escrevi muitas vezes sobre cotas e outras formas de ação afirmativa no ensino superior. Também já escrevi aqui sobre a importância da família na educação das crianças e sobre as vantagens de uma boa escola na corrida para a boa universidade. Mas vamos pensar no caso do João: ele não tem família, não tem em quem se espelhar e tampouco estudou em uma escola competitiva –dessas que custam, em média, cinco salários mínimos por mês. João tem, no entanto, um benefício no vestibular. “Se não fosse isso, eu jamais pensaria em fazer faculdade.”

Eu não sei se João vai concluir o ensino médio ou se entrará para as estatísticas de quem não termina a última etapa da educação básica (o que acontece com 50% dos alunos no Brasil). Tampouco sei se ele vai entrar em um curso de jornalismo. O que sei é que, hoje, esse garoto tem uma perspectiva por causa das cotas e, consequentemente, ganhou um motivo para se manter na escola e para brigar por uma vaga em uma boa universidade. Isso me parece bastante transformador, não?