Universidades têm de criar canais específicos para denúncia de estupro
A notícia de que três alunas da USP teriam sido estupradas durante uma festa do curso de medicina da universidade trouxe à tona um problema grave das escolas brasileiras: a inexistência de um canal específico para comunicação e denúncias de assédio sexual e de estupro.
Hoje, uma estudante da USP que quiser denunciar qualquer forma de assédio dentro da universidade deve procurar a ouvidoria. O caso será analisado no meio a outras tantas reclamações –como nota errada emitida por um professor em alguma disciplina ou mal funcionamento de um serviço da biblioteca. Não há uma atenção específica para o caso.
Mais: o simples fato de que esse tipo de denúncia deve ser feito na ouvidoria, e não em um órgão específico, pode intimidar as estudantes e reduzir o número de casos relatados. É a mesma lógica da delegacia para a mulher: antes, sem um serviço específico, muitas mulheres simplesmente não se sentiam confortáveis em fazer a denúncia em uma delegacia padrão. Agora, com uma delegacia específica, as chances de denúncia aumentam.
Com esse sistema torto de denúncia na universidade brasileira, fica difícil conhecer o tamanho do problema de assédio sexual e de estupro no campus. E, sem conhecê-lo, não dá para fazer políticas pensando em evitar e abordar esses casos. Sem informação, as alunas acabam ainda mais expostas. Como resolver isso?
O Abecedário investigou como funciona o sistema de denúncia em algumas universidades ‘top’ no mundo. Na Universidade de Michigan, EUA, por exemplo, há um serviço específico para acolher denúncias ligadas à assédio sexual. De junho de 2013 a junho de 2014, foram reportados 129 casos na universidade, que vão de retaliação à assédio sexual (considerado pela universidade como qualquer caso de toque com intenção sexual, incluindo até abraço, sem consentimento da vítima).
Os casos foram investigados e em 33 deles as vítimas foram orientadas a não falar com o suposto agressor. Até junho do ano passado, um aluno foi considerado culpado e foi expulso da universidade (veja relatório detalhado). Esse mesmo modelo –com canal específico para denúncia e relatórios anuais– é seguido pelas principais universidades dos EUA e da Europa.
MAIS INFORMAÇÃO
O serviço da Universidade de Michigan possibilita que a universidade identifique quais são os casos mais comuns, o perfil das vítimas e os pontos de maior vulnerabilidade no campus para as alunas. Com isso, consegue produzir um material detalhado, que é distribuído para as alunas com informações sobre o que caracteriza assédio sexual, como evitá-lo e como denunciá-lo (eu mesma recebi um informativo desses assim que cheguei na Universidade de Michigan para um período de estudos em 2012; na USP, Unesp e Unicamp, onde já fui aluna, nunca recebi nada parecido).
Mais: todas as denúncias de estupro e de outros tipos de violência dentro do campus, como roubos e assaltos, são enviadas por e-mail a todos os alunos. Alguém aí estuda em uma universidade brasileira e já recebeu um e-mail desses? Pois é, eu também não.
A identidade das vítimas, na Universidade de Michigan, sempre é preservada. Na USP, as três garotas viraram notícia e foram criticadas pela própria gestão da universidade por causa da denúncia. O próprio reitor teria dito, em reunião do conselho da universidade, que as denúncias mancharam a imagem da universidade (leia aqui). Oi?
O caso da USP criou tanta espuma e confusão que a Assembleia Legislativa de São Paulo acabou criando uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), que ficou conhecida como “CPI da USP”, para apurar a denúncia e o comportamento institucional subsequente. O relator é o deputado Ulysses Tassinari (PV).
A USP anunciou que vai ampliar a atuação da Comissão de Direitos Humanos da universidade para lidar com políticas e iniciativas na área (leia aqui), mas nenhum canal específico de comunicação desse tipo de caso foi criado.
A universidade brasileira precisa encarar o problema de frente, tem de incentivar suas estudantes a denunciar casos de assédio sexual e estupro e, claro, precisa criar canais específicos, efetivos e seguros para que isso seja feito. Enquanto isso não acontecer, toda estudante universitária brasileira já está sendo previamente agredida.
Agradeço à Fernanda Pires, da Universidade de Michigan, pela ajuda com as informações.