‘Escola sem partido’ propõe pluralismo de ideias, mas vai contra o debate
Muita gente tem se manifestado sobre o Programa Escola sem Partido, proposta de 2015, do procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib, que pretende incluir na legislação de educação brasileira, a LDB de 1996, nove artigos que tratam dos princípios da escola e dos deveres dos professores. Ok, vamos lá.
O projeto define, por exemplo, que as escolas devem ter “neutralidade política, ideológica e religiosa”. Diz, por exemplo, que escolas confessionais “cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos” devem obter dos pais ou responsáveis pelos estudantes uma autorização expressa para a veiculação de conteúdos.
Até aí, tudo bem, faz sentido: algumas escolas religiosas, por exemplo, ensinam que Deus criou homem e mulher –o chamado “criacionismo– e afirmam que o evolucionismo deve ser considerado apenas para o vestibular. Bom, parece importante que pais sejam claramente avisados de que seus filhos aprenderão esse tipo de conteúdo, dessa forma.
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O problema é que a proposta não para por aí. O projeto define, também, por exemplo, que “o Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos”. Opa! Temos um problema aqui. Sabemos que um dos principais motivos de abandono da escola pelas meninas é justamente a gravidez precoce. Não seria o caso de, no sentido oposto do que o projeto propõe, levar esse tema à sala de aula? E de discutir, como já sugeri aqui, neste blog, assuntos atuais e urgentes como a violência contra mulheres e homossexuais?
Mais: de acordo com a proposta, o Estado não fará “aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”. Bom, sabemos, no mínimo, que muitas meninas decidem não seguir carreiras de exatas justamente porque entendem que matemática, física ou tecnologia não é coisa para elas. Enquanto as escolas de países desenvolvidos caminham no sentido de trabalhar a ideia de gênero e profissões, por exemplo, parece assustador ignorar esse tema na escola brasileira.
DEMANDA
O movimento Escola sem Partido não surge numa virada de noite, mas atende uma demanda emergente de pais, que se indignaram com imagens recentes de professores doutrinadores. Teve vídeo de sala de aula pipocando na internet sobre isso e tudo mais. Ok, isso é válido, mas o movimento surge com a proposta de “pluralismo de ideias” e acaba indo contra o debate em sala de aula simplesmente porque o cerceia por meio de uma lei.
A proposta é filha da Lei Escola Livre, recentemente aprovada em Alagoas, que estipula como dever do professor abster-se de introduzir “conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais, religiosas ou ideológicas dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis”. Esse trecho, como escreve Miguel Nagib, foi retirado do Escola sem Partido porque “poderia impedir a abordagem de conteúdos científicos ou factuais em sala de aula, o que seria, além de indefensável do ponto de vista educacional, incompatível com a Constituição.” Ok.
Vale ainda lembrar que o projeto ignora a formação de professores. Ora, sabemos que cursos de licenciatura são recheados de teoria, inclusive já tratamos disso nesta Folha. Se a ideia é debater a doutrinação na sala de aula, o caminho não seria começar pela formação de quem dá aula? É importante que os próprios docentes identifiquem se estão expondo ideias ou trilhando o caminho da doutrinação.
Precisamos levar o debate para a sala de aula, temos de fazer com que nossos meninos e meninas reflitam, falem e escrevam sobre tudo o que está ao nosso redor. A escola tem de formar cabeças pensantes e indignadas, no lugar de criar um monte de reprodutores de conteúdo. Limitar o papel da escola e colar cartazes com “deveres do professor” não parece ser, nem de longe, uma solução.