‘Preciso tocar o coração dos alunos’, diz professor de refugiados

Sabine Righetti

Todas as terças e sextas-feiras à tarde, a casa de passagem “Terra Nova”, espaço do governo de São Paulo no centro da capital paulista onde vivem refugiados de países como Síria e Congo, fica um pouco mais agitada. É dia de aula de português do professor Crispim Calonge, 41.

Angolano, ele chega ao espaço dando uma gargalhada forte, compatível com seus 1,99 metros de altura. Quem ouve a força daquela risada não imagina que ele próprio tenha fugido de uma guerra que durou 38 anos e matou, estima-se, dois milhões de pessoas.

Justamente por ser refugiado, Calonge sabe escolher bem os temas das suas aulas. “Preciso tocar o coração dos alunos, senão eles não conseguem aprender.”

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No dia em que a Folha acompanhou sua lição para escrever uma reportagem sobre a sua história, Calonge trabalhou com a letra de música de Amir Sater, “Ando devagar”. Ensinou palavras em português e falou sobre a capacidade de, como diz a música, levar um sorriso depois de chorar demais.

O professor também perguntou o que fazia as alunas chorarem e do que elas mais sentiam falta. Todas mencionaram –em português– pessoas da família, como mãe e marido, que ficaram nos seus respectivos países de origem.

“Se eu não falar, na aula, sobre o que os alunos estão vivendo, eles não vão conseguir aprender. Os conceitos vão passar por eles sem tocá-los”, diz Calonge.

A teoria do professor angolano tem embasamento. Já tratei disso aqui no Abecedário, quando escrevi sobre o trabalho da educadora finlandesa e consultora em educação Anu Passi-Rauste, que diz que educação de qualidade é aquela que toca os alunos profundamente. Ou seja: o aluno estuda porque está motivado, emocionalmente engajado, vê lógica e utilidade naquilo que está aprendendo.

Agora imagine a dificuldade de aprender outra língua –ou aprender qualquer coisa– quando você acaba de fugir de uma guerra e deixa para trás tudo que ama? Pois é.

Na aula de Calonge, as alunas eram todas africanas. Fugiram de conflitos, de guerras e de perseguição política. Algumas estão grávidas, outras têm filhos pequenos que circulavam a sala de aula improvisada na cozinha do prédio. Grávidas são prioridade na casa de passagem “Terra Nova”.

Esse tipo de equipamento para atender refugiados é recente por aqui. A “Terra Nova” é o primeiro espaço oficial do governo e tem pouco mais de um ano de operação. Quem chega lá fica em média quatro meses, tem aulas e recebe ajuda para arrumar emprego –muitos refugiados têm diploma superior mas, na fuga, deixam seus diplomas para trás e não conseguem uma “segunda via” porque seu país está em guerra.

Desde sua inauguração, em outubro de 2014, o espaço já recebeu mais de 150 refugiados. Todos aprenderam português com Calonge.

Hoje, o angolano tem uma empresa de ensino de línguas e atende especialmente executivos. Quando chegou ao Brasil, há 20 anos, a realidade era bem diferente: ele chegou a morar na rua por nove meses, inclusive quando já era aluno de letras na USP.

Tem ressentimento dessa época? “Não, muita gente me ajudou”, conta. “Há mais lugares em paz do que em conflito no planeta. Eu acredito na bondade das pessoas.”